Lirismo, jornalismo, arte, verdade e qualquer ambivalência que deixe as coisas mais interessantes
Será que é pesado demais começar um texto de blogueiragem citando Prefácio à transgressão, de Foucault, ou O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer?
Socorro! Vamos à poesia, com Manuel Bandeira.

POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

Faço ecoar o último verso: – Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Hahahahahah…. O Bandeira estampando a bandeira hasteada em meu ateliê.

Aranhaverso, arteverso
Pegaram a referência? Tô muito cringe. Rsrsrs.
Foucault é um percurso possível. O francês vai lá do outro lado do rio para falar do que está deste lado. Ainda assim, não os vê como lados opostos. Esse movimento, esse deslocamento é o que permite a expansão do olhar. Limite e transposição do rio existem individualmente, mas precisam um do outro para serem vistos.
Eita!
Agora, deixe esse pensamento descansando aí no seu mapa mental e vamos a Kant. O filósofo pensa o mundo a partir de uma dualidade entre o que é a coisa em si (não pode ser experimentado) e o universo dos fenômenos (o que pode ser experimentado pelo homem).
Aí, chega Schopenhauer, não à toa, querido do povo das artes, que segue nesta linha da dualidade, mas com uma ponderação importante: a coisa em si e o fenômeno não são coisas diferentes, elas só seriam diferentes dentro da concepção humana de tempo e espaço. O que o aproxima do pensamento oriental: o mundo sensível é uma ilusão que mascara uma realidade una e transcendente.
Hum…
A arte educa, salva, denuncia, mas, também, ilude, degenera e corrompe. Arte é um caminho com muitas possibilidades abertas simultaneamente e o artista navega nessa ambivalência.

Por um Triz, entre o lirismo e o jornalismo
Pode ser só um torrão de barro, pode ser um espelho para sua sequidão interior, pode muito mais.
Não diferente de tudo o que foi falado acima, a arte de Triz flui entre o lirismo e o jornalismo. Agora, chega de falar em terceira pessoa porque o texto é sobre meu próprio trabalho.
Tenho me debruçado sobre o barro para a produção da série Rio Seco. E tenho até um texto poético para falar como cheguei até aqui.
“Meu corpo já estava coberto por densa camada de barro quando percebi que matei todas as flores do meu jardim por excesso de água.
Eu sentia a maleabilidade do rio em minhas mãos, pele sobre pele, quando percebi que estou contando a poeira da terra.“
É claro que a arte trabalha com metáforas e analogias. Sou amante da ambivalência das coisas, apesar de minhas fortes raízes no Jornalismo. Mas a poesia que escrevo com o barro se expande com a percepção de que algumas conotações possíveis têm origem em questões ambientais contemporâneas e meu desejo de dar voz à natureza.
Para além do campo sutil, tenho me debruçado, também, sobre os dados alarmantes da nossa paisagem. Falo, especialmente, sobre o trabalho incrível de levantamento de dados do Projeto Mapbiomas. Uma rede colaborativa, formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia, que faz um mapeamento anual da cobertura e uso do terra, da superfície de água e das marcas deixadas pelo fogo.
Como boa jornalista de dados que sou, fiquei horas e horas olhando para aqueles mapas, tentando entrevistar aqueles dados, e a única umidade possível da terra empoeirada eram minhas lágrimas.

Veja estas manchetes:
“Todas as regiões hidrográficas apresentam tendência de perda de superfície de água”.
“2013 a 2021 foram os anos mais secos da série histórica”.
“70% dos municípios do Brasil tiveram redução na superfície de água nas últimas três décadas”.
“As áreas com maiores perdas são as de alagamentos sazonais do bioma: áreas ficam poucos meses do ano com água e estão a cada ano alagando menos”.
“Ainda que a maior área de superfície de água do bioma Cerrado tenha sido mapeada em 2022, a última década apresentou valores abaixo da média”.
“Apesar da cheia nos reservatórios, a superfície de água em áreas protegidas diminuiu em 66% das regiões hidrográficas”.

Parece engano, mas você não leu errado. A superfície de água em áreas protegidas diminuiu em 66% das regiões hidrográficas. As áreas mais afetadas foram:
- PARNA do Araguaia
- PE do Cantão
- PE do Araguaia
- ESEC Serra Geral do Tocantins
- REVIS Corixão da Mata Azul
- Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba
- Reserva Extrativista Lado do Cedro
- PARNA da Chapada dos Veadeiros
- PARNA Caverna do Peruaçu
- PE do Sumidouro
Esses parques certamente poderiam dar nome a algumas das minhas telas e pedacinhos de terra encapsulados.
Mas a denúncia visual vem acompanhada do lirismo musicado. Cito, especialmente, Triste Partida, de Luiz Gonzaga. Inclusive, esta é uma das músicas que mais tem tocado em meu ateliê, me fazendo chorar de soluçar por vários momentos. Esta e outras canções estão sendo organizadas em uma playlist que compartilharei em breve.
EM BREVE O CATÁLOGO DA SÉRIE RIO SECO ESTARÁ DISPONÍVEL, AINDA EM CONSTRUÇÃO COMO A SÉRIE E SERÁ ATUALIZADO ENQUANTO SECAR RIOS FIZER SENTIDO
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