Que sonho ter um texto do Marco Antônio Vieira falando sobre meu trabalho! Sensação de puro êxtase me enxergar nessas palavras. Leia o texto em sua íntegra a seguir:

Minha alma sofre em casa de argila
ou como pensar a ‘terra’ em Triz de Oliveira Paiva
Minha alma sofre em casa de argila, mostra individual de Triz de Oliveira Paiva para o MUBAN (Museu das Bandeiras), materializa-se a um só tempo à maneira da cena de um crime e de uma espécie de sítio arqueológico. É, pois, desde sempre uma cena de indícios. A cena de um pesadelo é uma imagem cifrada: código de um código outro. A cena é o lugar de um acontecimento diante dos olhos que situam o corpo que vê no espaço da ação.
Aspira-se aqui à instauração de um ‘lugar’. Espaço que sedia acontecimentos: não há ‘cena’ ou ação que possa prescindir da materialidade a um só tempo ótica (visual) e háptica (tátil) que implica a noção e a possibilidade de ‘lugar’.
Minha alma sofre em casa de argila instaura ainda o que se poderia compreender como um ‘entrelugar’, em que se encenam negociações morfológico-matéricas (entre formas, suportes, linguagens e materialidades) que desestabilizam certezas consagradas pelos discursos da teoria e história da arte ocidentais, tornando-o assim um lugar de instabilidades temporais e fantasmáticas, em que o passado é a um só tempo trauma a ser convertido poeticamente e motivo de ressignificação estética.
Nos limites dessa mostra, há contaminação e indeterminação férteis (Mondzain, 2015), em uma espécie de confluência ‘expandida’, nos termos que se tomam de empréstimo de Rosalind Krauss (1979), em que os trabalhos de Paiva operam como um conjunto de efeitos advindos da desnaturalização da fixidez que caracteriza uma determinada visada histórica do que se define por pintura e escultura.
A partir do que se faz com o barro, os ‘objetos encontrados’ aqui reunidos remontam não apenas a uma possibilidade de escultura ‘recolhida’, ou seja, não modelada, cinzelada ou fundida pela artista mas sobre a qual se intervém, a partir do tratamento a que se submete o barro, convertendo-o em uma espécie de ‘pele’, cujas camadas reconfiguram os trabalhos de Paiva de modo que o revestimento que os recobre produza visual e texturalmente um particular entendimento do ‘pictórico’.
A possibilidade e a ideia mesmas de ‘cena’ é em tudo devedora da emergência histórica da pintura como instauração de um ‘lugar’ tridimensional que se ‘simula’ na superfície bidimensional e se alastra expandida na arte contemporânea para envolver o corpo na experiência multissensorial das instalações. Uma visualidade que se especializa tridimensional.
É ainda sobre um desfazimento conceitual da noção de ‘lugar’, dentro do enquadramento histórico que a arte contemporânea reservou para o ‘site-specific’ (trabalhos concebidos para um lugar específico), que o barro aqui assume uma potência retórico-tropológica (como figura de linguagem) e se torna metonímia da ‘terra’, significante que arrasta, carrega e convulsiona.
A escultura, salvo nos momentos estatuários de Minha alma sofre em casa de argila, não resulta de procedimentos tradicionalmente tidos como escultóricos. Ela se constitui antes como ‘intervenção’ de latências e potências ‘pictóricas’, sob a forma das pátinas terrosas que recobrem e reconfiguram o mobiliário que aqui se vê.
O barro aqui converte-se em véus espessos de terra que se depositam e envolvem parte dos objetos – mobiliário- que integram a exposição. Vela-se para (des)velar. O que se manifesta, portanto, é uma intervenção material às avessas, no sentido de que é o resultado do acréscimo das camadas de barro sobre os objetos aqui dispostos, de modo a alegorizar seu vínculo poético com a vermelhidão da terra do Cerrado. O ‘lugar’, como indício metonímico da terra, do território do Cerrado redesenha o alcance semântico originalmente associado ao campo da arte in situ (pensada especificamente para um local).
Nos limites espaço-visuais desta proposição poética que envolve o corpo de quem aqui se encontra, Triz de Oliveira Paiva retira da ‘terra’ aquilo que estrutura material e figurativamente o território que a um só tempo delimita e ultrapassa o ‘lugar’ de uma encenação. Convoca-se sensorial e cognitivamente quem adentra no espaço expositivo deste museu, uma antiga prisão do século XVIII, a encarar o que se poderia conceber como um pesadelo alegórico.
Minha alma sofre em casa de argila articula-se instalativa e entende, pois, a centralidade irrecusável do que as potências semânticas dos vocábulos ‘local’ ‘localidade’, ‘terreno’, território’ representam para uma artista que trabalhe nessa região, diante da compreensão do ‘lugar’ que o Centro-Oeste ocupa na narrativa história do território nomeado ‘Brasil’, a partir de suas violências a um só tempo simbólicas e necropolíticas (políticas estratégicas e seletivas de morte e silenciamento), como aprendemos junto a Achille Mbembe (2018).
A ideia de ‘lugar’ aqui se dilata e se expande para abarcar o momento histórico, o ‘quando’ de uma ocorrência. As imbricações conceituais de ‘lugar’ e ‘acontecimento’ são indissociáveis e, ao assumir o instalativo, Minha alma sofre em casa de argila busca reunir, naquilo que a instalação acomoda como linguagem artística, os sentidos (sensorialidade e significação) do que forja, para sua autora, esta mostra, ao mesmo tempo em que questiona material e conceitualmente uma tradição petrificada da teoria e história da arte eurocentradas.
A crise ecológica mundial constitui-se como um efeito inalienável da voracidade exploratória e genocida que a história colonial e suas sobrevivências neoliberais insistentes e nocivas representam para uma distribuição desigual do impacto trágico de crimes ambientais (Ferdinand, 2022), que caracterizam o Sul Global. O bioma do Cerrado sabidamente é alvo de crescentes e aparentemente irrefreáveis ameaças.
O ‘lugar’ que a terra ocupa em Minha alma sofre em casa de argila articula-se a um só tempo como vetor metonímico e alegórico. É vestígio metonímico da terra, do território do Cerrado e propõe reimaginar as fronteiras semânticas originalmente associadas ao campo da arte in situ, alegorizando a denúncia ambiental inscrita no pensamento que encerra a exposição e sua materialização cênica: o ‘lugar’ que aponta para um outro ‘lugar’. A simulação é o mais próprio da alegoria.
A terra que se convulsiona e engolfa, que desaba e desmorona, a engolir e devorar os corpos e vidas vulneráveis que ocupam o território desbastado pela voracidade econômica, na poética de Paiva, por meio de seu vínculo matérico, ‘esculpe’, ‘modela’ e ‘cinzela’ o lugar de uma imagem de denúncia que aponta alegoricamente para a tragédia do que aqui se nomeia ‘colonialoceno’, neologismo cunhado a partir de um entendimento das implicações colonialistas do termo ‘antropoceno’, originalmente proposto por Paul Crutzen (1933-2021), químico holandês agraciado com o Prêmio Nobel, que, todavia, negligenciava as imbricações interseccionais ( raça, etnia, sexo, gênero, classe social e inserção geopolítica), que atingem de modo assimétrico aquelas e aqueles que vivem na Terra e padecem das consequências criminosas da exploração indiscriminada da terra.
Adentrar Minha alma sofre em casa de argila é como imaginar a cena de uma tragédia a partir de seus indícios desoladores, restos e rastros de vidas e de corpos cujo lugar de existência cessa de existir em nome do progresso.
Os mecanismos climáticos e imersivos que aqui se propõem devem na verdade poder servir como gatilhos a desencadear uma ação reflexiva, interpelação a compreender Minha alma sofre em casa de argila como um libelo poético-ambientalista, um ‘lugar’ do qual a um só tempo se ausentam e se invocam aquelas e aqueles cujas vozes e gestos se calam e se enterram nos incontáveis crimes ambientais que varrem esta terra chamada ‘Brasil’, deixando em seu rastro um véu de poeira e de lama.
Terra roubada. Terra usurpada. Terra da usura. Terra da morte e morte da Terra.
Minha alma sofre em casa de argila sonha e convida quem compartilha este lugar a imaginar o (im)possível: ouvir as vozes de quem a terra exaurida, extorquida e explorada devorou, compreender seus apelos, agir em nome de uma terra outra, na Terra, sob pena de inexistir terra/Terra para onde voltar quando acordarmos do brutal pesadelo que a poesia aqui nos descortina como a mais cruel das realidades.
Estamos em plena cena.
Marco Antônio Vieira
Referências:
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. Prefácio de Angela Davis. Posfácio de Guilherme de Moura Fagundes. Tradução de Letícia Mei. São Paulo: UBU, 2022.
KRAUSS, Rosalind. “Sculpture in the Expanded Field”. October. Vol. 08, Spring, 1979. pp. 30-44.
KWON, Miwon. One place after the other– site-specific art and locational identity. Londres & Massachusetts: The MIT Press, 2002.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1, 2018.
MONDZAIN, Marie-José. Homo spectator – ver fazer ver. Tradução de Luis Lima. Lisboa: Orfeu Negro, 2015.
VIEIRA, Marco Antônio. “A exposição como alegoria ativista: resistências, interhistoricidade, polilogia”. Anais do 42º Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte: Futuros da História, 2022.

Marco Antônio Vieira é Doutor em Arte, na linha de Teoria e História da Arte, pelo PPG em Artes Visuais, do Instituto de Artes da UnB. Atua como curador independente desde 2007, tendo assinado curadorias de mostras individuais e coletivas com obras de artistas como Rubem Valentim, Athos Bulcão e Vik Muniz. Trabalhou junto a instituições como a Casa Fiat de Cultura (BH) e o Paço das Artes, em São Paulo. Desde 2019, desenvolve projetos curatoriais para espaços independentes no Centro-Oeste, em que investiga, junto aos artistas com quem trabalha, a noção de ‘exposição como obra’ e a espacialização significante que encerra o evento expositivo como montagem alegórica. É autor de textos críticos, curatoriais e acadêmicos, publicados no Brasil e no exterior. Desde agosto de 2022, é professor colaborador do Programa de Licenciatura em Artes Visuais, na área de teoria e história das artes visuais e processos poéticos no ensino de artes visuais, do Departamento de Artes, da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), Paraná.

Serviço:
Minha alma sofre em casa de argila
De | Triz de Oliveira Paiva
Instalação e site specific
Curadoria | Marco Antônio Vieira
Onde | Museu das Bandeiras (MuBan)
Cidade de Goiás – GO
Visitação | De 14 de fevereiro a 31 de março
Terça a sábado, das 9h às 18h
Domingo, das 9h às 13h
Agendamento | Telefone: (61) 35214345
Wpp: +55 62 98220-0079
Endereço | Praça Brasil Ramos Caiado, Setor Central – Cidade de Goiás – GO
Geolocalizador | https://museusibramgoias.acervos.museus.gov.br/museu-das-bandeiras
Entrada | Gratuita
Classificação indicativa | Livre para todos os públicos
Redes Sociais | @triz.dooutroladodojardim
@museus.ibramgo
@marcoantonioramosvieira
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