Curador: Marco Antônio Vieira
O conceito de vida é a pele que vivenciamos como nossa.
Elizabeth Povinelli
Vida, Visão, Saberes
Em Uma estranha forma de vida, exposição monográfica de Beatriz da Terra para a Fundação Athos Bulcão, a ‘vida’ só se pode confirmar a partir daquilo que a caracteriza e a institui como ‘irrupção’, ‘emergência’ e ‘aparição’, em poucas palavras, a ‘estranheza’, como índice de algo que descreve o que até então inexistia ou se ignorava, empresta a esta mostra sua razão de ser.
Em seus limites, o entendimento de poiesis (poética) como aquilo que ‘se cria’ busca aproximar-se do ‘acontecimento’ que é a vida como algo que ‘se faz’ (sem ‘intervenção’ ou ‘interferência’ intencionais e conscientes).
Uma tal tensão, aparentemente irresolvível, faz com que Uma estranha forma de vida se converta em uma espécie de gangorra entre aquilo que as cianotipias e aquarelas encapsulam como visualidade que oscila entre o desejo da artista e o que o processo de sua ‘confecção’ autoriza como algo ‘que acontece’, sem que a ‘mão do artista’ controle a integralidade daquilo que surge como artefato imagético.
A figurabilidade que triunfa nesta mostra é aquela das formas ameboides, estes organismos cuja etimologia grega amoibè (ἀμοιβή) remete à ‘mudança’. Formas ‘amorfas’, microscópicas que conduzem o trabalho de Beatriz da Terra a uma troca de olhares entre arte e ciência a partir do lugar que as tecnologias óticas da imagem ocupam nesta fronteira, teorizada por W.J.T. Mitchell (1987 & 1995), em que o ‘saber’ materializa-se a um só tempo como um fenômeno visível e como sintaxe visual que ‘dá a ver’ o objeto de um conhecimento que de outro modo não nos seria acessível, daí que o negatoscópio integre o arranjo expográfico desta exposição, constituindo-se como um dispositivo expositivo, conceitual e poético .
Historicamente, os campos da História Natural, da Botânica e da Anatomia Humana promovem uma imbricação inalienável entre arte e ciência, a partir daquilo que a ilustração e o desenho viabilizam como estruturas representacionais. As tecnologias da imagem laboratorial e médica, como o raio x, as ressonâncias, as ultrassonografias, as tomografias todas permitem, por meio daquilo que se mostra em sua superfície, ‘esquadrinhar’ (Flusser, 1985) nisto que é o ‘espaço territorial da imagem’, as sintomatologias do visível
Neste sentido, Uma estranha forma de vida articula-se como uma reencenação poético-visual atualizada desta tradição e insere-se igualmente em uma cena artística contemporânea em que a impermanência e a imprevisibilidade, que definem a ‘vida’ e seus ciclos de início (nascimento) e fim (morte), contrapõem-se veementes às vãs tentativas de eternização da vida a partir de como a arte pôde – materialmente – petrificar-se marmórea e perene.
Em Uma estranha forma de vida, o fenômeno artístico equaliza-se, tanto quanto possível, às acontecências próprias à vida, em suas modulações aparentemente involuntárias, e ecoam o motivo estruturante da canção da fadista portuguesa Amália Rodrigues, que inspira o título desta mostra, tendo como central o lugar metafórico do coração como o órgão que, na espécie humana, aloja a dor e o sofrimento amorosos, à revelia de quem ama.
A ‘imagem’ da involuntariedade que se desprende dos versos da canção lusitana avizinha-se aqui do acontecimento em tudo ‘inesperado’ que é a vida e é nessa (in)familiar estranheza que se articulam aqui as proposições visuais aquareladas dominadas por figuras que se apropriam da noção mesma de ‘formação’, a saber, aquilo que se dá quando surgem as ‘formas em devir’: as formas metamorfoseando-se em outras formas perpetuamente.
Que se possa pensar na exposição como um ‘processo’, como ‘fluxo’ instável: eis o exercício poético que Terra se impôs em Uma estranha forma de vida.
Biotas, Aquarelas, Ato
Biota: conjunto de seres vivos que habitam um determinado local como plantas e animais.
Que seja justamente a ‘água’ o elemento, o meio e, de algum modo, o fundamento e o princípio que pautam a imagem aquarelada é tudo menos fortuito, contudo, para além daquilo que costumeiramente se associa à ‘vida’, Elizabeth Povinelli (2023) convida-nos a repensar as fronteiras entre a ‘vida’ e a ‘não vida’.
Se, no texto de Povinelli, uma formação rochosa não seria meramente redutível a uma mina de manganês, mas antes o lugar onde as mulheres ancestrais teriam se estabelecido, se o que se veem como fósseis, ossadas é o ‘sonhar do cão’, Uma estranha forma de vida busca precisamente inserir aquilo que se apresenta como ‘artefato imagético’ a apreciar-se ‘esteticamente’ (suas aquarelas e cianotipias e mesmo as imagens que se autorizam negatoscópicas) em um contexto amplificado que aspira à instauração de uma versão poetizada de um laboratório em que se ‘encena a vida’.
Ora, se a ‘encenação’ se define pela colocação em imagens, que aquilo que o ‘trabalho das imagens’, a seguirmos Rancière (2021), possa efetiva ou ao menos idealmente transcender uma forma visual e estruturar um mundo comum, que os elementos destinados à apreciação estética presentes nessa mostra se articulem de tal modo às ações performativas concebidas pela artista para acontecerem ao longo do período expositivo que a exposição se converta finalmente em interpelação à ação reflexiva, dando a ver a dimensão eminentemente ‘política’, no sentido de que redefine a trama de interrelações que caracteriza o tecido social, que habita o pensar a vida para além da primazia hierarquizante da vida humana: pensar a vida da planta (Mancuso, 2019, 2021, 2024 & Coccia,2018), a vida das outras espécies (Haraway, 2022), a vida das formações geológicas (Povinelli,2023) e assim redefinir igualmente o que é a estranhamente familiar dádiva da vida em sua complexidade para além daquilo que nossos corpos e linguagem são capazes de conceber: é na mais radical e impensável alteridade (Lévinas, 1985) que se confirma o ethos da vida e revela em sua inteireza o que se deveria entender por ‘ética’.
Nem fim, nem começo: acontecências
“Adoro o fato de que, quando ‘eu’ morrer, todos esses simbiontes benignos e perigosos tomarão e usarão o que restar de ‘meu’ corpo, nem que seja só por um tempo”, é o que nos diz Donna Haraway (2022).
Encarar o espectro da morte é ou deveria ser o confronto mais radical, equiparável à mais radical outridade, de que nos falam os textos de Emmanuel Lévinas. Repensar o que define ‘vida’ e ‘morte’.
Talvez imaginar o que é a vida para além da esfera humana, lidar com a arrogância do especismo que caracteriza o ‘humano’, não apenas quando se está diante dos outros animais, mas sobretudo quando se está diante do ‘não-animal’, diante da planta, do vegetal, do geológico, do micróbio, do microscópio de toda essa massa de viventes que tornam o próprio fenômeno da morte uma extensão inimaginável, ainda que biologicamente legítima da vida, e exercitar-se no sentido de poder fazer com que ‘isso aconteça’ de algum modo nos limites da arte integra o projeto de Beatriz da Terra como uma espécie de artivismo da terra.
Que a arte possa redimir-se do esquecimento, ou antes, do desprezo ontológico e filosófico a que condenou inúmeras formas de vida, pois que ao negligenciá-las, acaba inevitavelmente por compreender a vida como necrologia: menospreza-se aquilo que se ignora, se desconhece ou que aparenta ameaçar-nos as frágeis certezas que definem nosso entendimento da vida e da morte.
Uma estranha forma de vida não dá as costas nem à beleza nem àquilo que seus temas inspiram e esforça-se a seu modo pela possibilidade de que aquilo que coloca em circulação possa não apenas surtir deleite visual mas igualmente pôr em movimento os mecanismos e engrenagens que nos façam sonhar com um mundo em que a imponderável estranheza que é a vida nos torne finalmente ‘menos humanos’, mais capazes de aceitar o incontrolável do amor, pois como nos ensina Emanuele Coccia: “A sobrevivência da quase totalidade dos seres vivos pressupõe a existência de outros viventes: toda forma de vida exige que já haja vida no mundo”.
Talvez assim possamos finalmente encarar a ‘morte’ sem que a precisemos produzir violentamente, como ‘aniquilação do outro que eu não reconheço como legítimo’, permitindo que ‘aconteça’ como fenômeno da vida e não como estratégia necropolítica (Mbembe, 2018).
Imaginar-se não apenas a ‘olhar’ os demais viventes, mas a ‘ser olhado’ pelos outros animais, como nos sugere o texto de Jacques Derrida (2011) ou antes imaginar a radicalidade de um mundo alterado pelas outras formas de vida, não um mundo como inversão especular e narcísica do mundo dos humanos no Ocidente, mas antes um mundo outro das demais espécies, como prega o perspectivismo e o multiculturalismo indígenas do qual nos dá notícia Eduardo Viveiros de Castro (2009).
Uma estranha forma de vida entende as formas inusuais do viver e seus viventes como formas legítimas da vida.
Referências:
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Métaphysiques cannibales- lignes d’anthropologie post-structurale. Tradução de Oiara Bonilla. Paris: PUF, 2009.
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas – uma metafísica das plantas. Tradução Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Tradução Fabio Landa. São Paulo: Unesp, 2011.
FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta- ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.
HARAWAY, Donna. Quando as espécies se encontram. Tradução Juliana Fausto. São Paulo: UBU, 2022.
LÉVINAS, Emmanuel. Altérité et Transcendance. Paris: Fata Morgana, 1985.
MANCUSO, Stefano. A planta do mundo. Ilustrações de Andres Sandoval. Tradução de Regina Silva. São Paulo: UBU, 2021.
_____________________. Revolução das plantas. Tradução Regina Silva. São Paulo:UBU, 2019.
_____________________. Nação das plantas. Tradução Regina Silva. São Paulo: UBU, 2024.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1, 2018.
MITCHELL, W.J. T. Iconology – image, text, ideology. Chicago: Chicago University Press, 1987.
______________________.Picture theory: essays on verbal and visual representation. Chicago: Chicago University Press, 1995.
POVINELLI, Elizabeth A. Geontologias – um réquiem para o liberalismo tardio. Apresentação e Tradução de Mariana Ruggieri. São Paulo: UBU, 2023.
RANCIÈRE, Jacques. O trabalho das imagens- conversações com Andrea Soto Calderón. Tradução Ângela Marques. São Paulo: Chão de Feira, 2021.
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