Um pequeno mapa do tempo. Texto poético, escrito com as mãos sujas de barro, sobre a gravura em metal Buraco de minhoca – um autorretrato


No meu jardim tem buraco de minhoca. Claro que estou falando sobre aquele bichinho lindo, de corpo alongado, cilíndrico, cheio de anéis e com pequenos filamentos que ajudam na locomoção, e sobre a forma como se comporta. Minhoquinha esperta. Seu longo caminhar nutre a terra e ara o solo. Tão poético quanto estranho é pensar que a dieta das minhocas é baseada em detritos, são decompositores. Ok, já me convenci, mais poético do que estranho. Estranho mesmo é quem destrói a terra e constrói barreiras para água e enraizamento.
No meu jardim tem buraco de minhoca. Claro que não estou falando sobre a estrela da compostagem. Trata-se do meu túnel particular, formado por grandes distorções no espaço-tempo. Há quem duvide – uma pena, imagino o vazio de não ter como escapar da rotina. Acredito no Einstein e na vida experimental. Poucas coisas, se é que existe alguma, podem ser mais geniais do que experienciar o tempo suspenso.
No meu jardim tem buraco de minhoca. E não estou aqui querendo encontrar as soluções das equações de Einstein que tratam da relatividade geral. Estou dizendo que o Coelho Branco passeia por aqui. E um lindo pedaço de tecido azul resiste agarrado a um galho já morto, treme com o vento que se tornou mais forte nos últimos tempos. Pois é, paisagem álibi, flores cúmplices. Jardins também são lugares para crimes, incluindo a pedofilia.
No meu jardim tem buraco de minhoca, mas não pense que estou falando sobre Charles Lutwidge Dodgson porque não trairia Marcel Proust facilmente, me refiro ao movimento circular que repito Em busca do tempo perdido, onde volto para o começo sempre que ouso achar ter entendido alguma coisa, gerando clara percepção de que estou presa em obra romanesca, já nem sei há quanto tempo, restando apenas uma vaga ideia de que, por mais que vague por outros estilos literários, sempre, retorno às longas combinações de palavras – que, obviamente, não sei fazer.
No meu jardim tem buraco de minhoca, o que não tem nada a ver com a Recherche de Proust. Aumente o volume que você vai compreender sobre o que estou falando. Essa é a voz de Belchior cantando um Pequeno mapa do tempo. “Medo/ Medo/ Medo, medo, medo/ Medo/ Eu tenho medo e já aconteceu/ Eu tenho medo e ainda está por vir”. Há muitos medos roubando meu tempo, nem sei como deu tempo de chegar até aqui.
No meu jardim tem um buraco de minhoca. E não me resta muito tempo para ter medo. Buraco de minhoca é onde eu me refugio e me protejo, onde não preciso me despir de mim. Na vulnerabilidade, vejo coragem. Não pode faltar buraco e nem bravura para lidar com tantas formigas, aves, centopéias, ratos, sapos, ácaros e sanguessugas.
No meu jardim tem um buraco de minhoca. Minhoca que ama a plasticidade e as sombras das pétalas, passeia por raízes profundas e não suporta a visão romântica de jardim. Que diacho é o paraíso? Já parou para pensar que é nele que habita o cérbero, guardião da porta de entrada para as profundezas?
Não pergunte pelo meu nome
Nem queira adivinhar entrelinhas
Uma minhoca dissecada não é mais uma minhoca
Prazer, Minhoca.
…………………………………………………………………………………………
A arte em gravura foi realizada durante a residência artística do Vilarejo 21 deste ano. Oficina conduzida com maestria e afeto pelo artista Rafael Marques
No responses yet